Artigo

20/07/2025
Autor: Renata Soltanovitch
Suspensão à luz de velas e honorários no escuro
crônica

Tudo começou quando a dona vizinha — amiga da saudosa mãe da advogada — bateu à sua porta num domingo chuvoso, sujeito a trovões e relâmpagos.
O gato miava de fome, enjoado daquela marca barata de leite com lactose. Após um grande estouro causado por um raio e o consequente apagão, a advogada resolveu deixar a vizinha entrar.


Apesar de a advogada ter verdadeira aversão a receber clientes em casa — ainda mais cercada por velas acesas e vestindo roupa de domingo como se fosse dia de faxina — fez uma exceção e, mesmo contrariada, a recebeu. Só não pôde oferecer um cafezinho, já que sem luz, a cafeteira não funcionava.


Ela estava às voltas com um problema envolvendo o sobrinho, que havia lhe pedido dinheiro emprestado e não devolvido, apesar da existência de uma mensagem de WhatsApp e do comprovante do pix, confirmando a existência do empréstimo e da promessa de pagamento futuro. O processo parecia simples e o valor modesto. O problema — como sempre — era a vizinha, que não aceitou a proposta de pagamento parcelado. Preferiu litigar contra o filho de sua irmã, simplesmente pelo prazer de demandar.


A ação foi proposta e, tão logo o sobrinho foi condenado pelo juiz ao pagamento, ele quitou a dívida, depositando o valor em juízo e aplicando, por analogia, o artigo 916 do Código de Processo Civil — inclusive os honorários sucumbenciais — tudo para evitar a penhora de sua conta bancária.


Enquanto essa ação tramitava, outra precisou ser proposta — desta vez contra o ex-marido da vizinha, que havia prometido transferir-lhe o apartamento após o divórcio... e não o fez.


Ficou verbalmente acordado o valor dos honorários, que coincidia com o montante a ser recebido da primeira ação movida contra o sobrinho. Nessa ação, o pagamento seria feito ad exitum. Já na segunda — envolvendo o ex-marido — os honorários seriam quitados em três parcelas, conforme disposto no § 3º do artigo 22 do Estatuto da Advocacia: um terço na distribuição da ação, outro na prolação da sentença e o restante ao final, ou seja, após o desfecho da demanda e a lavratura da escritura.


Porém, a advogada deixou de formalizar os honorários por contrato escrito. Havia apenas uma troca de e-mails confirmando os valores e o envio das respectivas procurações para assinatura digital. Resultado? A vizinha não transferiu nenhum valor referente à segunda ação — apenas responsabilidades.


Coincidentemente, ambas as ações foram resolvidas na mesma época. Quando a advogada prestou contas e tentou descontar os honorários da segunda ação — aquela contra o ex-marido — a vizinha recusou a compensação, alegando que o processo havia sido “fácil demais”. Afinal, foi por causa da sentença condenatória do juiz é que o ex-marido resolveu transferir o imóvel


Assim, de credora, a advogada virou devedora.


Veio o processo disciplinar na OAB: suspensão do exercício profissional até efetiva prestação de contas, com direito a publicação no Diário Oficial. Tudo por causa de uma cliente inadimplente que não aceitou uma prestação de contas justa.


O absurdo foi tamanho que a advogada precisou contratar uma colega para propor uma ação judicial para pedir a compensação, depositar os valores em juízo e requerer a condenação da dona vizinha ao pagamento de honorários. Além disso, foi necessário solicitar a penhora do dinheiro que ela mesma havia depositado em juízo, com o objetivo de evitar a prorrogação de sua pena  disciplinar de suspensão do exercício profissional até efetiva prestação de contas.


A verdade é que nem o juiz compreendeu o embaraço. Quase condenou a advogada por litigância de má-fé, não fosse a necessidade de esclarecer que precisava, apenas, de autorização para compensar créditos.


Lição aprendida: nenhum trabalho deve ser feito sem contrato assinado, com cláusula de compensação de honorários. É mais seguro. E muito mais sábio.