Artigo

26/05/2019
Autor: Renata Soltanovitch
Psicografia e o processo sofrido por Chico Xavier
O caso Humberto Campos

O caso mais emblemático que envolve obras psicografadas ocorreu no ano de 1.944. Toda literatura sobre o tema remonta o caso “Humberto de Campos” como pioneiro na discussão de direitos autorais em obra psicografada no Brasil.


Nesta ação, a viúva e seus filhos, herdeiros de Humberto de Campos Filho, ingressaram com ação declaratória contra Chico Xavier – o médium psicografava suas obras – e a Federação Espírita Brasileira – editora dos livros.


Segundo consta no livro de Elizeu F. Mota Jr (direito autoral e obra psicografada) e confirmado no próprio livro de Miguel Timponi (a psicografia ante os Tribunais), que é a copia do processo acima citado, o pedido inicial teve a seguinte redação:


“Sem querer entrar no exame do mérito literário dessas produções – obtidas, segundo versão espírita, por métodos “mediúnicos” – deseja a Suplicante que V.Excia. (sic), submetendo a hipótese – para sua elucidação – a todas as provas científicas possíveis, se digne declarar, por sentença, se essa obra literária É OU NÃO DO “ESPÍRITO” DE HUMBERTO DE CAMPOS.


No caso negativo, se – além da apreensão dos exemplares em circulação – estão os responsáveis pela sua publicação:


a) – passíveis de sanção penal prevista em os artigos 185 e 196, do respectivo Código.


b) – proibidos de usar o nome de Humberto de Campos, em qualquer publicação literária.


c) – sujeitos ao pagamento de perdas e danos, nos termos da Lei Civil.


No caso afirmativo, isto é, se puder ficar provado que a produção literária em apreço é do “Espírito de Humberto de Campos”, deverá V. Excia (sic), “data vênia”, declarar:


a) – se os direitos autorais pertencerão exclusivamente à Família de Humberto de Campos ou ao mundo espírita, representado, entre nós, pela Federação Espírita Brasileira; devendo, outrossim, ficarem definidos não só o caráter da intervenção do “médium” como os limites – sob o ponto de vista literário e econômico – da sua participação.


b) – se reconhecida os direitos da Família de Humberto de Campos, poderão os titulares desses direitos dispor livremente dessa bagagem literária, sem quaisquer restrições, como dispõe (sic) da obra produzida ao tempo do desaparecimento do escritor.


c) – se a Federação Espírita Brasileira e a Livraria Editora da mesma Federação estão passíveis das sanções previstas na Lei, pela publicação das obras referidas nos itens 2 e 3, sem a prévia permissão da família do escritor”.


Contestada a ação pelo advogado e escritor do livro “A Psicografia ante os Tribunais”, sua defesa pautava nas preliminares de (i) pedido juridicamente impossível; (ii) petição inicial inepta e (iii) pedido declaratório impróprio. Já no mérito, pedia a improcedência da ação para declarar o médium o único detentor de direitos do autor.


A sentença, por sua vez, que possuía apenas o limite daquilo que foi proposto, ou seja, que “declarasse, por sentença, se são ou não são do espírito de Humberto de Campos as obras literárias referidas na inicial...” entendeu por bem em julgar carecedores da ação a esposa do falecido Humberto de Campos e seus filhos, deixando claro que, com a morte, extinguiu todos os direitos de Humberto de Campos e, portanto, o livro escrito por Chico Xavier não poderia atribuir direitos patrimoniais ao falecido.


Destaca-se trechos da sentença pertinentes ao caso:


“Nossa legislação protege a propriedade intelectual, em favor dos herdeiros, até certo limite de tempo, após a morte, mas, o que considera, para esse fim, como propriedade intelectual, são as obras produzidas pelo “de cujus”em vida. Odireito a estas é que se transmite aos herdeiros. Não pode, portanto, a suplicante pretender direitos autorais sobre supostas produções literárias atribuídas ao “espírito” do autor.


A sentença foi objeto de recurso. Porém, foi mantida na íntegra pelo Tribunal de Apelação do Distrito Federal, até sob o fundamento processual, ou seja, que a ação intentada não era a correta, pois o Poder Judiciário não é órgão de consulta.


Vale a pena citar o trechos do acórdão da Quarta Câmara:


“... O Poder Judiciário não é órgão de consulta. Para que se provoque a sua jurisdição o litigante, mesmo na ação declaratória, há de se afirmar um fato que se propõe a provar e pedir que o Juiz declare a relação jurídica que desse fato se origina. A não ser que se peça a declaração da autenticidade ou falsidade de algum documento (caso em que o autor deve afirmar inicialmente, para provar depois, se é falso ou verdadeiro o documento), o objetivo da ação declaratória há de ser necessariamente a existência ou inexistência de uma relação jurídica, não do fato de que ela possa ou não se originar. ‘Só afirmando um fato e a relação jurídica que dele deriva, poderá o autor vencer a ação ou dela decair. Como observa, com razão, a contestação, a presente ação declaratória, tal como está formulada a conclusão da inicial, jamais poderia ser julgada improcedente, se fosse admissível’. Não fora preciso dizer mais, nem melhor. Os argumentos dessa decisão, vazados em linguagem lógica e sintética, desenvolvem a tese do interesse legítimo peculiar à ação judicial, eis que o grande escritor Humberto de Campos, já falecido, não poderia, depois de sua morte, transferir aos seus herdeiros e sucessores nenhum direito autoral, por isso, que, com a morte, extinguindo-se todos os direitos e, bem assim, a capacidade de os adquirir, não poderia ela, logicamente, ter adquirido direito de espécie alguma, segundo o conceito expresso do art. 10 do Código Civil. Invocando, portanto, a autora um direito autoral inerente às obras produzidas por Humberto de Campos, qualquer lesão ou ofensa ao conteúdo dessa obra literária deve ficar circunscrita e visar exclusivamente ao direito que sobre elas lhe assegura a lei, não se legitimando, conseguintemente, nenhuma (sic) interesse fundado em fato estranho àquelas obras, como seja, no caso concreto, pretender a autora o reconhecimento de direitos autorais sobre supostas produções literárias atribuídas ao “espírito” de Humberto de Campos....”


E mais para frente, o v. acórdão aponta questões interessantes envolvendo o próprio mérito, ainda que a sentença tenha enfrentando apenas a questão preliminar.


Vale a pena destacar o seguinte:


“...Ainda mais.: examinando o objeto da presente ação declaratória, acentua a decisão recorrida que a mesma não tem por fim a simples declaração de existência ou inexistência de relação jurídica, nos termos do parágrafo único do art. 2º do C.P.C., mas objetiva, segundo os itens formulados na inicial, a proposição de mera consulta, eis que a autora não afirma um fato e a relação jurídica que dele deriva, mas, ao contrário, pretende que a Justiça, submetendo a hipótese, isto é, a investigação sobre a produção de obras supostamente literárias atribuídas ao “espírito” de Humberto de Campos – para sua elucidação – a todas as provas científicas possíveis, e, assim, declare a existência ou não de um fato do qual, num terreno hipotético, possam resultar relações jurídicas alternativamente enunciadas pela autora. De fato, a inicial, objetivando semelhante investigação, constitui mera consulta; não contém nenhum pedido positivo, certo e determinado a que a Justiça se deva cingir e sobre o qual se possa manifestar. Razão assiste, ainda, sob esse aspecto, ao ilustre Juiz, prolator da decisão recorrida, atentos os pressupostos, já ressaltados, da ação declaratória, a cujo ingresso em juízo se impõe a argüição de interesse legitimo inerente à existência ou inexistência de uma relação jurídica ou à declaração da autenticidade ou falsidade de documento. Ora, basta considerar o que vem exposto na inicial, visando o debate na tela do Poder Judiciário de questão cuja transcendência científica permanece envolta nas sombras de dúvidas até aqui intransponíveis ao conhecimento humano, como o incognoscível, nitidamente com o caráter de consulta, investigação e positivação, para o fim de ser admitida a existência ou não de determinado fato, de que resultaria a demonstração de ser ou não do “espírito” de um grande escritor, falecido, incriminada publicação, para, desde logo, se concluir pela ilicitude do pedido da autora e, sobre ser assim, que esta não logrou enquadrar semelhante pedido nos pressupostos legais da ação declaratória a ponto de impor se conclua, inarredavelmente, pela impropriedade do meio judicial visado...”


O dilema sobre o assunto persistiu durante todo o tramite do processo, embora inquestionável a seriedade de Chico Xavier sobre as psicografias por ele publicadas.