Artigo

09/08/2025
Autor: Renata Soltanovitch
O Juiz musical
crônica

O doutor juiz estava cansado de tantas demandas desnecessárias. Era o cansaço jurídico, aquele que vem em forma de petições retóricas e de advogados que acham que repetir a mesma tese em três parágrafos diferentes é uma forma de persuasão. Pensam que despachar com o juiz irá fazer o processo andar mais rápido. Pura bobagem. Não aquentava mais esta retórica jurídica. Advogados com laudas e laudas de argumentos repetitivos, as partes com picuinhas para não resolver problemas simples... e já estava o doutor juiz entre esaj e eproc.


Quanto mais o advogado insistia com inúmeras petições e tentativa de despachar com ele, menos seu processo tramitava. Ele já não queria ler mais nada. Só queria ouvir uma boa música clássica e apreciar uma bela taça de vinho.


Mas o destino, esse compositor de tragédias, tinha outros planos. O doutor vinha de uma linhagem de juízes: avô juiz, pai juiz, tios juízes... Ele, o único filho, não teve escolha. Enquanto os colegas da faculdade sonhavam com a toga, ele sonhava com partituras e sinfonias. Tocava violino com mais vontade de quem despachava liminares.


Só que naquele dia, o universo jurídico resolveu testar sua paciência. Seu colega de gabinete o incumbiu de uma missão, já que ele entendia tanto de canções, resolveu pedir que presidisse uma audiência de instrução sobre direitos autorais. Só não disse que era funk. Nada contra o gênero, mas o doutor juiz preferia notas musicais mais clássicas. O processo não era dele, claro. Era do juiz titular, que embarcou para Coimbra, já que não podia recusar um convite para dar uma palestra a pedido do Ministro.


O caso era urgente, com mídia em cima e funkeiros em guerra. A música em disputa era um sucesso estrondoso, tocada até em elevador. Os autores ganhavam por semana em direitos autorais o que o juiz demorava o mês inteiro para ver em seu hollerith.


Antes da audiência, o juiz fez o dever de casa: leu o processo, ouviu a música umas vinte vezes com fone de ouvido, claro, para não comprometer a reputação, e até tentou entender a poesia da letra. Fez uso até de uma garrafa de Barolo Riserva Monfortino. Tudo em vão.


Mas estava pronto para presidir a audiência, até porque, era sua função e ele não poderia comprometer a honra do bom nome da família.


Só que o caos é criativo e no dia da audiência, um terceiro funkeiro interpôs uma petição de Oposição, alegando que a música era dele. E não só isso: disse que a composição só fez sucesso porque um jogador de futebol a cantou após marcar um gol de placa. A audiência virou episódio típico para ser narrado pelo apresentador Siquêra Junior. Imprensa na porta, partes se acusando, advogados se socando como se estivessem num ringue. Os funkeiros, gigantes e tatuados, pareciam saídos de um campeonato de MMA. Os seguranças do Fórum, sensatos, prenderam os advogados e deixaram os funkeiros quietos — afinal, quem quer mexer com gente que rima “amor” com “motor”?


No meio da pancadaria, os funkeiros pararam para assistir ao espetáculo jurídico. Era como se tivessem pago ingresso. E o juiz? O juiz suspendeu a audiência, acionou a comissão de direitos e prerrogativas da OAB e foi embora. Não para a delegacia, como os demais. Mas para casa, onde o único conflito que enfrentaria seria entre Vivaldi, Mozart e Beethoven. Porque no fim das contas, entre eproc e esaj, o juiz não queria mais era ter que presidir outra audiência desta natureza e o melhor era esperar que o titular da vara voltasse de Coimbra e assumisse este embrólio.