Artigo

25/01/2018
Autor: Renata Soltanovitch
O advogado e a lenda judicial
Adriano, um advogado acima de qualquer suspeita, perde seu grande amor e, no desespero, contrata um feiticeiro para trazê-la de volta. A situação vai parar nas barras do Tribunal e caberá ao Juiz Diretor do Fórum acalmar o coração do moço

1. O AFFAIR DO PERSONAGEM


Adriano era apaixonado por Isabel e seus anos de noivado transcorriam muito bem, sem quaisquer sobressaltos. Um dia, Adriano foi procurado por Maria, uma antiga amiga, que lhe pediu ajuda para resolver um problema judicial, e este encontro transformou-se em um affaire, com troca de e-mails, muitos torpedos e desculpas para reuniões e almoços.


Os encontros aconteciam em lugares exóticos, sugestivos, diferentes. Pura luxúria. Todos escolhidos por Maria.


Lugares que Adriano jamais se preocupou em levar Isabel, pois nunca esteve inteiro na relação, mas sempre no automático. Não tomava a rédea da própria vida. Apenas a levava.


Sua iniciativa de viver era limitada às desculpas, contempladas pelo seu rival interno, que, sentado em uma confortável poltrona imaginária, assistia de camarote à inércia do rapaz.


O principal encontro com Maria se deu em um charmoso chalé. Isolado, em  meio a uma montanha, nada mais.


Com direito a lareira, cortinas de seda, pétalas de rosas espalhadas pelo chão e duas taças do vinho tinto da uva Pinotage, surgida em 1925, do cruzamento da pinot noir e da cinsaut (antes Hermitage).


A referida uva foi criada pelo professor de viticultura Abranham Perold, e o vinho escolhido por Maria havia sido envelhecido em barris de carvalho franceses e suas uvas colhidas pelas mãos dos monges africanos capoeiristas, que seguiam rituais de fé antes da colheita, para que aqueles que apreciassem a bebida pudessem ser inundados de humildade, compaixão e sabedoria.


O vinho também continha uma etiqueta aderindo ao código wieta, sendo que a uva daquela safra havia sido cultivada no deserto do Klein Karoo.


Para acompanhar o esplendoroso vinho, Maria preparou um medalhão de avestruz ao molho de ervas frescas.


Espalhadas pelo ambiente, inúmeras velas, todas acesas pessoalmente por Maria, com pedido ao anjo da guarda para lhe conceder Adriano.


Diz a lenda que as velas teriam uma certa magia por conta do fogo.


Todas as velas acesas por Maria estavam vacilantes e, em uma delas, a única de cor rosa e untada com água de rosas e mel, estava escrito o seu nome e o de Adriano.


As demais foram colocadas em diversos locais, entre eles a lareira e o candelabro sobre a da mesa.


Outras estavam presas em gaiolas e nas lanternas luminosas, de cores e formatos diferentes. Todas exalavam um leve perfume.


Até a estampa do guardanapo, que continha as obras de Praxiteles, foi escolhido de forma intencional por Maria.


Na música de fundo, Luxúria, de Isabella Taviani.


A decoração exótica do chalé era simplesmente sensacional.


As cadeiras de canto, amadeiradas, pareciam estar de pernas cruzadas, como se tivessem algo a esconder. O sofá, em forma de flores desabrochando; as estantes, em forma de galhos escuros, denotando rigidez suficiente para repousar livros de conteúdos proibidos e contrastando com a madeira clara do interior do chalé.


Provavelmente, a decoração seguia o padrão Feng Shui, o que intensificava o erotismo do lugar.


A cozinha, por sua vez, era bem rústica e aconchegante, com bases claras na parede, tal como o resto do chalé.


Da janela, contemplava-se uma incrível paisagem, onde era possível admirar, sem muito esforço, aquela cratera com formado cônico e montanhoso, considerada um dos maiores lagos de larva do mundo, com aproximadamente 250 metros de profundidade.


Aquelas lavas ebuliam de forma violenta, por conta do impacto entre duas placas tectônicas, com partículas quentes, que escorriam há mais de 100 km por hora, exibindo o espetáculo da natureza. O que se assemelhava com o barulho de uma cachoeira era a erupção das lavas, que se derramavam sobre a crosta terrestre na cor alaranjada fosforescente.


Pouco tempo depois da chegada do casal no chalé, o vulcão demonstrou seu esplendor. Foi mais de uma hora de espetáculo, até que a fúria da natureza cessou, deixando no ar o cheiro de enxofre e na paisagem cones de cinzas vulcânicas do fim da erupção. Cena semelhante ao que se sucedeu ao casal dentro do chalé.


Isabel era apaixonada por Adriano e o queria a qualquer custo. Seu irresistível charme o seduziu, sem que ele pensasse nas consequências de seus atos.


 2. A NOIVA do PERSONAGEM


Adriano era noivo de Isabel, uma moça educada, simples e cheia de sonhos.


Ela estudava Psicologia em uma Universidade do interior e trabalhava com crianças portadoras de limitações. Isto a fazia acreditar no amor, na fé e na evolução do ser humano.  


Adepta à crença da mentalização e vivência, Isabel se sentia plena em tudo o que fazia.


E, assim, confiava em Adriano. Acreditava na sua cumplicidade e no compromisso da felicidade mútua, jamais desconfiara que ele fosse capaz de traí-la.


Mas, certo dia, um deslize do rapaz fez com que fosse descoberto o tal relacionamento com Maria, causando o rompimento de seu noivado com Isabel.


Ela, ao invés de esbravejar, brigar, fazer escândalos, se calou. Rompeu com Adriano, obviamente explicando sua descoberta. Simples assim, e, como diria a música de Frejat, 3 Minutos: “Se nenhum amor dura pra sempre / nenhuma dor também / Viver é bem mais”.


Porém, ao contrário do comportamento de muitos casais quando rompem relacionamentos, Isabel não devolveu presentes, não jogou na cara de Adriano a aliança de noivado. Apenas foi embora. Não tão simples assim, mas algo que lembrasse o texto “O Menestrel”, de Veronica Shoffstall e inspirado em Shakespeare.


Adriano ficou totalmente transtornado. Com síndrome de Otelo, embora tenha sido ele, Adriano, o adúltero, a ensejar o fim do relacionamento.


Infeliz, passou a maltratar as pessoas ao seu redor. Brigou com todos. Odiou a si mesmo e a própria vida.


 3. A CONTRATAÇÃO do FEITICEIRO


Adriano ficou perturbado, sem saber o que fazer. Emagreceu, ficou doente, não tinha mais vontade de trabalhar, até que um dia, após passar horas caminhando sem rumo, ouviu um trecho da canção “Altar Particular”, de Maria Gadú, e teve a ideia de contratar um feiticeiro para fazer um trabalho de “amarração do amor”, ou seja, trazer Isabel de volta aos seus braços, e que ela perdoasse seus atos inconsequentes.


Nem precisou se dar o trabalho de procurar alguém para fazer a tal magia, pois as propagandas estavam estampadas em todos os postes da cidade, com os seguintes dizeres: Trago seu amor de volta. Pagamento só com o resultado comprovado.


Embora Adriano tenha imaginado que esse tipo de propaganda pudesse ser proibida, por ser considerada abusiva, ainda assim decidiu que valeira a pena o risco de procurar o tal feiticeiro. De fato, a esse respeito, o artigo 37, parágrafo 2, do Código de Defesa do Consumidor, dispõe:


Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.


Depois da entrevista de praxe, o feiticeiro asseverou que o trabalhado final, com resultado garantido, custaria R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). Porém, o material, cujo valor era de aproximadamente R$ 15.000,00 (quinze mil reais), deveria ser custeado pelo cliente.


Adriano achou razoável, até porque, fazendo uma analogia ao seu mister como advogado, de fato, nas poucas vezes em que era contratado ad exitum para uma ação judicial, somente recebia no final. Porém, as custas judiciais, despesas com cópias, condução, perícia, entre outras diligências, eram sempre de responsabilidade do cliente.


O feiticeiro, por sua vez, fez um recibo, prestando contas, inclusive, do valor adicional de R$ 15.000,00, referente a despesas com materiais e com uma viagem à Bahia para fazer um despacho – não no sentido jurídico, mas no sentido exotérico –, denominado “oferendas”, o qual deveria ser colocado em um determinado terreiro.


Também seria necessária a aquisição de velas, toalhas, incensos e, principalmente, sal grosso e ervas, como arruda, guiné, espada de São Jorge, aroeira, folhas de fumo, pétalas de flores brancas e amarelas, além de diversas outras plantas, para os banhos de encantos que Adriano deveria tomar, em rituais de purificação da alma e alívio da dor.


Recomendou que ele adquirisse uma pequena fonte e a ligasse diariamente, para que os fluidos de sua água pudessem se cristalizar e energizar o ambiente.


Havia, ainda, a necessidade de Adriano frequentar algumas sessões de terapia, pois o feiticeiro, conhecedor da alma, fé e mente humana, precisaria entrevistá-lo diversas vezes, para poder abrandar a sua agitação, além de ensiná-lo a fazer meditação transcendental, com vistas à atração de bons pensamentos.


Tudo acordado e contratado por escrito – já que Adriano, advogado, se documentava de tudo o que fazia.


E, assim, o feiticeiro passou a ministrar-lhe alguns importantes ensinamentos, nas sessões de terapia, encontros que se davam semanalmente.


A cada sessão realizada, Adriano assinava o termo de controle e recebia um pequeno livro sobre o tema abordado. Isto porque, para o feiticeiro, a combinação do resgate da alma, aliada às oferendas e aos banhos tomados, certamente lhe renderiam o retorno ao equilíbrio, o que permitiria que ele enxergasse os fatos com mais serenidade.


Seria na mente de Adriano o primeiro passo da cura, e era primordial que ele tivesse fé, já que se encontrava em total desequilíbrio energético.


Era necessário, também, aprender a se amar. E o feiticeiro tinha, como uma de suas metas, fazer com que Adriano entendesse a importância de valorizar a própria vida, permitindo-se pequenos mimos, agradar-se e agradecer, aumentando sua vibração energética positiva.


Adriano não entendia que ele era um ser único, precioso, como todo e qualquer ser humano, e que não precisava ter algo ou ser importante para aceitar-se, nem, muito menos, se comparar ou competir com outro. Precisava reconhecer-se, fazer um novo começo da vida.


O feiticeiro também queria que Adriano se observasse melhor e corrigisse seus hábitos diários desenfreados, vivendo no piloto automático, como se o dia fosse uma estrada e o corpo um carro veloz, com o objetivo de chegar a um fim para subir ao pódio.


Era necessário observar o dia como uma bela estrada, margeada por flores, cachoeiras, aves, e onde o próprio caminhar faz a beleza da vida.


Não havia necessidade de um carro potente, que corresse velozmente, já que isto impediria o prazer de curtir a paisagem, admirar as pessoas ou conversar com o Criador.


E Adriano precisava assumir esse novo olhar. As atribuições diárias são oportunidades, não castigo, e não devem ofuscar a beleza do caminho. Ademais, não se está sozinho neste planeta, não se pode fazer da própria vida uma prisão solitária ou uma guerra interna.


Outra sugestão do feiticeiro foi fazer uma limpeza no armário, com doação de roupas e objetos que Adriano não mais usava, pois, segundo acreditava, quando se repassa o que não se usa, se dá lugar a coisas novas.


Adriano não percebia, mas o feiticeiro estava simplesmente mostrando para ele o que era a fé e como viver intensamente, pois não precisa de muito para se viver, dependendo do que se tem na alma.


 4. O ENSINAMENTO SOBRE A FÉ


O feiticeiro deu início aos trabalhos e disse para Adriano que tivesse fé, no sentido mais extensivo possível, e que acalmasse seu coração.


A fé, disse o feiticeiro, não é algo que se ensina, mas uma experiência pessoal e intransmissível. É a crença em algo maior, o cultivo das boas energias. Somos aquilo que atraímos.


Aconselhou Adriano, ainda, a se livrar dos maus pensamentos, do orgulho bobo, dos ressentimentos, e até daquela atitude de superioridade, uma vez que tudo poderia virar nada e se perder na falta de humildade.


A orar, sem frases prontas e sem a necessidade de proferir palavras inúteis por horas a fio, em vãs repetições. Sugeriu que as orações fossem feitas com o coração puro, sem pedidos absurdos, ligados não à materialidade, mas ao amor, à caridade, à paz e à justiça.


Pois que, se pedisse com fé e se lhe fosse justo, obteria a graça almejada.


Ressaltou, ainda, que Adriano deveria perdoar as pessoas que com ele erraram, já que pretendia o perdão de sua amada Isabel. E que o segredo de sua oração e de sua fé não precisava ser revelado a ninguém.


Que era de expressa importância que seu pensamento estivesse tomado por vibrações energéticas positivas, já que é no impulso da vontade que se direciona o pensamento. E que a conquista da felicidade deve se iniciar pela mentalização.


Esta era uma das formas onde o tal de livre-arbítrio deveria ser utilizado e harmonizado com a vontade divina.


Dever-se-ia escapar da inércia positivamente, como um meio de se iniciar uma reforma íntima.


Após diversos encontros para explicações sobre a fé, o feiticeiro ensinou a Adriano uma Prece ao Senhor do Bonfim e pediu-lhe que, durante sete sábados seguidos, fosse a uma igreja, acendesse nove velas brancas e rezasse um pai-nosso, além, é claro, de procurar a benzedeira Sinhá e tomasse sua benção por nove semanas seguidas, assegurando-lhe que nada seria cobrado neste sentido.


Quanto à peregrinação do feiticeiro, esta seria intensa, com extensas caminhadas no Pelourinho, onde assistiria diversas missas, tanto na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, ao som dos atabaques, como também na Igreja São Pedro dos Clérigos, Ordem Terceira de São Domingos, Catedral Basílica, sem contar a participação em diversos rituais dos terreiros locais.


Ao longo da jornada, Adriano foi novamente alertado pelo intuitivo feiticeiro de que precisava realmente trabalhar sua crença e sua fé, purificando a mente.


É obvio que Adriano, incrédulo, não fez nada disso, deixando a cargo do feiticeiro o cumprimento de sua promessa, já que estaria recebendo para isto e, se não desse certo, a culpa seria somente dele.


 5. A LEI MARIA DA PENHA E SUA APLICAÇÃO


Um belo dia, Adriano encontrou Isabel em uma festa e não conseguiu parar de olhá-la durante a noite inteira, enquanto ela se divertia com as amigas. Isabel ficou assustada com aquele comportamento de Adriano, principalmente porque ele a abordou na saída da festa e, em tom de ameaça, asseverou que já havia providenciado o necessário para que ela voltasse para ele.


Insistindo em levá-la para casa, acabou machucando Isabel, que decidiu então lavrar um Boletim de Ocorrência, com fundamento na Lei Maria da Penha, na Delegacia da Mulher próxima à sua residência.


De fato, aquilo causou uma tremenda repercussão, pois, depois dos trâmites normais do próprio procedimento criminal, Adriano ainda acabou respondendo a um procedimento disciplinar no Tribunal de Ética da OAB, por conta de um oficio expedido pela própria delegada de polícia, com fundamento no artigo 34, incisos XXV, XXVII, XXVIII do Estatuto da Advocacia, tendo como pena para o indiciado o disposto no inciso XXV, ou seja, a de suspensão do exercício profissional, pelo prazo mínimo de 30 dias, e, nos demais, a pena de exclusão do quadro da Ordem dos Advogados do Brasil, conforme inciso II do artigo 38 do Estatuto da Advocacia.


Adriano sabia que, para o procedimento de exclusão, seria necessária a manifestação do Conselho Seccional (parágrafo único do mesmo inciso), após ter ocorrido a instrução do feito disciplinar na instância do Tribunal de Ética, e após designação de julgamento para tal fim.


Sua vida acabou virando de “pernas para o ar”, e o que mais lhe assustou foi Isabel, em plena audiência criminal, citar o trecho da música de Rita Lee: “Reza”, fazendo crer que o “trabalho de amarração” que fizera para ela não surtiria efeito.


Adriano ficou transtornado e, ao sair da audiência, literalmente esbarrou no Juiz Diretor do Fórum, que, ao perceber a situação, já que não era difícil ler a sua expressão corporal, apenas comentou que ele deveria ser mais zen, não no sentido de não fazer nada, mas no de caminhar com leveza, com simplicidade.


E, segurando no braço de Adriano e olhando em seus olhos, disse que ele deveria ser como um pedreiro, reconstruindo sua casa interna, para obter uma moradia mais saudável, e olhar para aquela parede vazia, refazendo melhor os seus pensamentos.


Apesar da voz zen do magistrado, Adriano sentiu ter levado um tapa na cara, mas já era tarde demais. Naquele mesmo dia, coincidentemente, seria a audiência contra o feiticeiro, já que havia decidido também processá-lo.


 6. O PROCESSO JUDICIAL CONTRA O FEITICEIRO


Furioso com tudo e ainda respondendo ao procedimento criminal e ético-disciplinar, Adriano havia decidido processar judicialmente o tal feiticeiro, com base no fundamento da violação do Código de Defesa do Consumidor, já que o resultado pretendido e esperado não surtira o efeito. Assim, pleiteava a devolução dos R$ 15.000,00 (quinze mil reais), além de dano moral, por perspectiva de direito frustrada, tese utilizada em sua petição inicial.


A ação foi distribuída na Justiça Comum e o juiz determinou a citação do feiticeiro, marcando a audiência de conciliação, que, coincidentemente, ocorreria no mesmo dia da audiência criminal com Isabel, com diferença de algumas horas entre uma e outra.


Na audiência, o feiticeiro, por intermédio de seu advogado, munido de contestação, apresentou-se àquele juiz – Dr. Guilherme - e comprovou que o trabalho havia sido realizado, incluindo diversas sessões de terapia. Porém, como Adriano não tinha fé e não soube amenizar a dor de seu coração para reconquistar Isabel, certamente, não obteve do trabalho o efeito pretendido. Por esta razão é que se ateve apenas à cobrança do material utilizado e despesas com viagem, e não do valor estipulado para o resultado pretendido, ou seja, R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).


Como não havia outras provas a serem produzidas, o juiz Guilherme imediatamente sentenciou o processo, julgando improcedente a ação em plena audiência, e deixando bem fundamentado que Adriano não tinha razão em suas reivindicações.


Embora o juiz Guilherme fosse declaradamente ateu, fundamentou sua sentença na espontânea vontade de um advogado – imaginando-se conhecedor das leis – contratar um feiticeiro para que mostrasse a ele o caminho da fé.


Pontuou que, por ser este um país laico, deveria haver o respeito à crença inicial de Adriano, quando pagou alguém para elaborar terapias holísticas, sessões de descarrego ou ainda adquirir materiais para uma viagem, na esperança de trazer seu amor de volta.


Não havia cobrança para o pagamento da não conquista de Isabel. Apenas para o valor recebido inicial, como dito alhures.


Para o magistrado ateu, ainda assim, não havia ilicitude no ato do feiticeiro, posto que a cobrança tinha, como um dos principais fundamentos, a participação de Adriano em sessões de terapia, fossem elas holísticas, psicológicas ou de descarrego. O fato era que o serviço foi prestado na forma inicialmente contratada.


Embora o juiz Guilherme não acreditasse nos alegados dons sobrenaturais do feiticeiro, reconhecia que os materiais, ditos apenas como simbólicos em sua sentença, sequer foram superfaturados, e todos possuíam nota fiscal, legitimando assim a comprovação da contratação.


Sustentou, ainda, que teria o feiticeiro a oportunidade de, em sua contestação, fazer um pedido contraposto, como mesmo afirmou em sua defesa, abstendo-se, no entanto, de fazê-lo, já que o resultado final não fora alcançado. Afinal, a magia solicitada por Adriano, simbolizada por seus desejos, não se associava a um amor verdadeiro por Isabel, uma vez que ele requeria apenas a posse perdida, por sua própria culpa.


Transfigurado com todo o ocorrido, acometido por um grande ódio na alma e se sentindo humilhado pela forma como transcorreu a audiência, Adriano teve literalmente um chilique no Fórum. Aliás, dentro da sala do magistrado Dr. Guilherme, embora este já houvesse se retirado do recinto, já que faltava às partes somente assinar a pauta da audiência, com a sentença proferida.


Com aquele “piti” todo, o juiz Guilherme retornou à sala de audiência e convocou a presença da polícia militar, que ficava do lado de fora do Fórum.


Para evitar problemas ainda maiores, o juiz ainda solicitou a presença de um membro da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB e do Juiz Diretor do Fórum, justamente para evitar quaisquer problemas futuros com a Corregedoria.


Embora Adriano não estivesse sofrendo qualquer violação de seus direitos, ou qualquer tipo de ameaça, o magistrado Guilherme, que era um homem legalista, sabia que uma das atribuições da Comissão de Direito e Prerrogativas era promover medidas e diligências necessárias à defesa, prevenção e garantia dos direitos e prerrogativas profissionais do advogado.


Não pretendia o juiz Guilherme prender em flagrante Adriano por desacato, mas entendeu ser melhor preservar o disposto no artigo 7, inciso IV do Estatuto da Advocacia – Lei Federal n. 8.906/94.


O advogado, membro da Comissão de Direitos e Prerrogativas, ouviu e acompanhou toda a situação. Mas foi o juiz diretor do Fórum, com seus quase 1,90 cm de altura, cabelos pretos e olhar grave, apesar de toda a sua paciência zen e de ser um incentivador da cultura da paz, quem conseguiu, com suas palavras de respeito e humanização, acalmar novamente Adriano, que, mesmo depois de ouvi-lo atentamente, em seu segundo encontro com ele naquele mesmo dia, abandonou o local em prantos.


No entanto, o juiz Guilherme instaurou um expediente interno, ainda na presença do membro da Comissão de Direitos e Prerrogativas, ouvindo apenas como testemunhas seus servidores e a Polícia Militar.


Logo em seguida, oficiou o Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados para apuração da infração disciplinar pelo comportamento de Adriano, capitulado no teor do inciso XXV do artigo 34 do Estatuto da Advocacia, e objetivando que a Ordem dos Advogados suspendesse o advogado do exercício profissional, pelo prazo mínimo de 30 dias, nos termos do artigo 37, inciso I, do mesmo diploma legal.


Por conta do ocorrido na audiência do feiticeiro e do oficio expedido pelo magistrado Guilherme, seria este o segundo procedimento disciplinar a que Adriano responderia por causa de Isabel – claro, nada como culpar outrem por sua própria conduta. E o mais preocupante era que, em eventual reincidência de condenação, poderia ensejar uma majoração da pena de suspensão do exercício profissional, sujeitando Adriano a um afastamento por prazo superior aos 30 dias inicialmente estipulados.


Naquele mesmo dia, Adriano, que estava bem perturbado, saiu pilotando sua potente motocicleta e sofreu um grave acidente. Ficou entre a morte e a vida.


Na verdade, o que estava esfalfado era o coração de Adriano, que sofria com a perda de Isabel, depois que ele mesmo a traíra, em uma aventura sem precedentes, com uma bela mulher, porém desprovido de qualquer vínculo amoroso com esta. A possibilidade de se sentir ainda um homem sexy e atraente falara mais alto naquele momento.


 7. O PROCEDIMENTO ÉTICO-DISCIPLINAR CONTRA o PERSONAGEM


Coincidentemente, ambos os procedimentos disciplinares foram distribuídos no mesmo Tribunal de Ética e, pela ocorrência dos fatos serem bem próximas, tiveram numeração sequencial.


A secretaria ficou atenta e expediu, em ambos os casos, a intimação de Adriano, por carta via AR, para apresentar defesa prévia no prazo de 15 dias, nos termos do do Código de Ética.


A defesa deveria vir acompanhada dos documentos que comprovassem as  alegações e de um rol de até cinco testemunhas, informando seus respectivos endereços.


Por conta de estar hospitalizado em decorrência do acidente de moto, Adriano deixou transcorrer in albis o prazo da sua defesa, ou seja, sem que nada fosse apresentado a seu favor.


Porém, com fundamento no §4º do artigo 73 do Estatuto da Advocacia o presidente do Tribunal de Ética nomeou um defensor dativo, em ambos os casos, para apresentar sua defesa, já que a secretaria do Tribunal não sabia de sua internação.


Diligente, o defensor dativo Daniel conseguiu descobrir que Adriano - o advogado representado - estava internado em estado grave no hospital local. Mas, ao invés de somente noticiar tais fatos ao presidente do Conselho e requerer prorrogação de prazo, nos termos do §3º do artigo 73 do Estatuto da Advocacia, entendeu por bem apresentar uma boa defesa e requereu a suspensão de ambos os procedimentos disciplinares.


O presidente daquele Tribunal de Ética local, no entanto, optou por dar prosseguimento à representação – até porque a defesa estava muito bem feita – e enviou os autos ao assessor da Presidência para um parecer de juízo de admissibilidade de ambos os casos.


O primeiro procedimento, que envolvia o ofício expedido pela delegada de Polícia, acabou sendo arquivado, pois Isabel contratou um advogado que requereu a sua desistência, já que não tinha mais nenhum sentimento que pudesse manter aquela situação. Afinal, Adriano estava internado.


O assessor da Presidência expediu, com base no pedido de Isabel – como terceira interessada –, um parecer de indeferimento liminar da representação, e o presidente do Tribunal de Ética determinou que os autos fossem remetidos ao presidente da Ordem dos Advogados para determinar o arquivamento daquele procedimento, nos termos do §2º do artigo 73 do Estatuto da Advocacia.


Deste procedimento Adriano estava livre. O problema residia no outro Processo Disciplinar, oriundo do Fórum local e expedido pelo magistrado Guilherme, por conta de seu comportamento no dia da audiência.


Também havia rumores de que estava sendo instaurado um procedimento cautelar de suspensão do exercício profissional, nos termos do §3º do artigo 70 do Estatuto da Advocacia, com eventual suspensão preventiva.


Por sorte, tal procedimento cautelar não foi instaurado, em que pese o fato de Adriano não ter como ser suspenso preventivamente, já que estava em coma por conta do acidente, o que ensejaria, por si só, a incapacidade de exercer a profissão. Mas era Daniel, seu defensor dativo, que estava preocupado.


O segundo procedimento disciplinar seguiu seu curso normal, exigindo que o defensor dativo de Adriano apresentasse a tese de que não havia sido praticada qualquer conduta incompatível ao exercício profissional, a ser acolhida pelo assessor da Presidência.


Necessitava o defensor dativo de Adriano tentar entender e definir o que era “conduta incompatível com o exercício da advocacia” para desqualificar tal tipificação evitando que a pena aplicada a Adriano fosse de 30 dias de suspensão, e tentando convertê-la para uma pena mais branda, ou seja, a pena de censura.


O prejuízo para Adriano seria imenso, já que a pena de suspensão causaria a apreensão de sua carteira profissional da OAB por 30 dias, impedindo-o de advogar. Ele poderia sofrer outro processo disciplinar, se assinasse uma simples petição enquanto suspenso.


O defensor dativo de Adriano estava realmente inquieto e, mesmo não o conhecendo, estava disposto a fazer a melhor defesa possível, pois tinha conhecimento do que acontecera e dos motivos que levaram seu assistido ao hospital.


Não seria a primeira vez que Daniel, o defensor dativo, estaria na cova dos leões. Mas, sábio, cultivava a fé e sabia que habitava um espírito excelente. Certamente, encontraria a solução.


E, então, Daniel decidiu buscar, na forma mais filosófica possível, a definição de “conduta incompatível com a advocacia”, para desclassificar a infração indicada e tentar uma pena mais branda para Adriano – o representado –, evitando, assim, a suspensão do seu exercício profissional, já que foi neste sentido o parecer de admissibilidade do assessor da Presidência do Tribunal de Ética, com fundamento no artigo 34, XXV do Estatuto da Advocacia, motivado pelo chilique de Adriano, conforme noticiado no relatório do oficio vindo do Fórum local.


Acolhida a representação, foi, neste sentido, instaurado o procedimento disciplinar.


Por determinação legal, Adriano e seu defensor foram novamente notificados, só que desta vez pelo Diário Oficial, para apresentar nova defesa quanto ao acolhimento da representação e instauração do procedimento disciplinar e arrolar testemunhas.


Em seguida, foi designada audiência de instrução em que Daniel, o defensor dativo, ouviu as várias testemunhas arroladas, objetivando desclassificar a infração disciplinar, já que a conduta de Adriano não se enquadrava em nenhuma das alíneas do parágrafo único do artigo 34, muito menos na “incontinência pública e escandalosa”.


Mas Daniel – o defensor dativo – preocupa-se com a definição compreendida pelo Relator em relação à leitura da referida infração disciplinar, e que a definição adotada pudesse suspender Adriano do exercício profissional.


O fato é que, embora Adriano estivesse destemperado e tenha se excedido em sua conduta, os acontecimentos não geraram comoção pública, pois a audiência havia ocorrido a portas fechadas, pelo calor intenso e o ar condicionado ligado.


E foi nesta situação – de portas fechadas – que Daniel, o defensor dativo, fundamentou parte da sua defesa para alegar que a conjunção aditiva “e” da continência pública e escandalosa não existia.


Afirmou, ainda, que o juiz Guilherme não se sentiu afrontado, pois sequer prendeu Adriano por desacato. Em vez disso, determinou a presença da Comissão de Direitos e Prerrogativas para preservar Adriano de si mesmo e ressaltou que presença do juiz Diretor do Fórum objetivava apenas acalmar o coração do moço, que realmente estava muito doente, transtornado, triste e perdido.


E acrescentou que, pelo princípio da razoabilidade, em especial o da proporcionalidade, não havia como admitir que um único ato caracterizasse esta falta, a ensejar a pena de suspensão do exercício profissional.


Não havia, por parte de Adriano, ressaltou seu defensor, provas que indicassem a continuidade na sua má conduta - lembrando ao leitor que o outro procedimento disciplinar foi arquivado e não deve ser levado em consideração para aplicação da pena. E mais: que se deve acreditar que o fato isolado praticado iria corroer o elo de confiança na qualidade de advogado, ressaltando-se, no mais, que, naquele momento, ele patrocinava o processo contra o feiticeiro, em causa própria.


Salientou o defensor dativo Daniel que Adriano rebelara-se somente naquela ocasião, pois, quando o juiz diretor do Fórum chegou, tudo se acalmou, e as palavras proferidas foram atentamente ouvidas.


Após o prazo para oferta de razões finais, o processo foi remetido ao relator para proferir seu voto, e o julgamento foi designado.


É fato que a conduta de Adriano era reprovável e merecia punição. No entanto, a pena de suspensão do exercício profissional pelo prazo de 30 dias por conduta isolada desta natureza prejudicaria imensamente o advogado, sobre o qual não pesava qualquer condenação anterior no Tribunal.


Assim, o relator, acolhendo a tese do defensor dativo, desclassificou a infração disciplinar para o disposto no artigo 2º, parágrafo único, incisos I e III do Código de Ética e Disciplina da OAB, e aplicou a pena de censura para Adriano, só que sem a conversão em advertência, em decorrência dos fatos narrados na representação e dos documentos ali acostados, com fundamento no artigo 36, II, do Estatuto da Advocacia.


Daniel, o defensor dativo, saiu satisfeito do julgamento, agradeceu aos julgadores e elevou seu pensamento ao Criador, por tudo ter dado certo.


Entendeu que não deveria recorrer da decisão, pois, dados os fatos ocorridos, a pena de censura havia sido aplicada corretamente, sem qualquer prejuízo para a carreira de Adriano.


 8. O ACIDENTE E O ESTADO DE COMA DO PERSONAGEM


Enquanto Adriano se encontrava em estado de coma, muitas pessoas oravam por ele. A começar pela mãe, com sua fé inabalável. Só quem tem uma sabe do seu amor incondicional por um filho, seja ele natural ou adotivo.


Ela cultivava a crença de que o pensamento voltado para o bem sempre atraía o bem. Não sentia ódio ou raiva por ver filho naquele estado. Apenas mantinha-se ao seu lado, munida pela fé e a esperança de que, certamente, ele retornaria à vida, não só consciente do que fez, mas como uma gratidão imensa pela graça recebida.


Também seu defensor dativo, embora não o conhecesse, era muito espiritualizado e acreditava que o poder da oração seria capaz de ajudar na cura de Adriano.


Concentrava o seu pensamento na alma sofredora de Adriano, conectando sua própria alma na dele, e estendia-lhe a mão para ajudar em sua cura.


Outro que orava por Adriano era o juiz diretor do Fórum – que ficou sabendo do acidente, noticiado por Daniel –, exercitando sua prática de meditação para elevar os pensamentos ao Grandioso, na ajuda da cura.


O feiticeiro, que, com seus conhecimentos além da vida, ficara sabendo o que aconteceu a Adriano, também não deixou de fazer pedidos por sua recuperação.


Por fim, igualmente importante, foi a ajuda da equipe médica, que, além de se empenhar na cura, adotava práticas holísticas coadjuvantes, usadas na medicina tradicional chinesa, em que o paciente é visto como um todo, ou seja, corpo, alma e mente.


Independente da crença de cada um, o fato é que havia uma única energia cósmica voltada para um pedido comum. E, assim, todos elevaram seu pensamento para que Adriano retornasse à vida.


9. O EXERCÍCIO DA FÉ


O procedimento disciplinar tramitou enquanto Adriano estava em coma e, após alguns dias de ter transitado em julgado a decisão, ele acordou de seu sono profundo e reconheceu a figura da mãe ali presente, diariamente, com sua inabalável fé na recuperação do filho.


Adriano sorriu, sentiu-se confortável com sua presença. Pediu-lhe que acendesse as velas de Shabat, já que era uma sexta-feira e ainda havia tempo suficiente para providenciar o necessário antes dos vinte minutos que antecediam o pôr-do-sol.


Acender as velas no horário determinado, como sua mãe sempre lhe explicou, significava parar para cuidar de si e iluminar o caminho, unido a milhares de outros judeus em uma única corrente do bem.


Enquanto os médicos se revezavam para realizar os exames em Adriano, sua mãe conseguiu, na diretoria do hospital, um candelabro com duas velas, correspondentes às duas expressões "Zachor" e "Shamor”, e um alimento leve, que incluía a chala, para compor a mesa da reza.


No caminho até o quarto do filho, ela então deixou moedas na caixinha de doação do hospital e, com o pensamento elevado de agradecimento, posicionou-se para iniciar seu Shabat.


Em todo o Shabat, a mãe de Adriano acendia as velas e, em uma prece silenciosa, pedia saúde, bem-estar físico e espiritual para sua família. Porém, neste Shabat, após acender as velas e recitar a benção, não pediu mais nada, apenas agradeceu o retorno de seu filho ao corpo físico e ao ambiente familiar.


10. A CURA DO PERSONAGEM E SUA DEDICAÇÃO AO TRABALHO


Adriano saiu do hospital curado de corpo e alma. Resolveu aceitar sua condenação no procedimento disciplinar e resolveu pedir desculpas pessoalmente ao magistrado Dr. Guilherme.


Também fez questão de agradecer ao juiz diretor do Fórum, pois ficou sabendo de suas orações. Agradeceu aos médicos e a todos aqueles que oraram por ele, incluindo o feiticeiro e principalmente sua mãe.


Tornou-se amigo de Daniel, seu defensor dativo, que, com competência e sem conhecê-lo, elaborou uma boa defesa. A este ofereceu, inclusive, um jantar, com homenagens, manjares e perfumes suaves. Daniel, mesmo sabendo que a boa defesa era sua obrigação, aceitou de bom grado a oferta. Sabia que um forte vínculo de amizade dali nasceria, com a troca de experiências e o aprendizado mútuo.


Adriano decidiu ingressar em um curso de pós-graduação oferecido pela Escola Superior de Advocacia (ESA). Além disso, passou a trabalhar com afinco e dedicar-se amorosamente ao seu mister. Aprofundou-se, também, no conhecimento filosófico de sua alma, com dedicação especial ao Zazen e à Kabbalah, por entender que ambos se completavam no caminho da felicidade e na busca da paz interior.


E, assim, cabe terminar este conto com as palavras de Khalil Gibran, extraídas de seu livro “O Profeta”: “E dedicar-se ao trabalho, é na verdade amar a vida. E amar a vida através do trabalho é ser íntimo do mais profundo segredo da vida... E quando trabalhais com amor vos unis a vós mesmos, uns aos outros, e a Deus.”


 


FIM