Artigo
Dizia Machado de Assis: “A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre por mais vontade que tenha de as infringir.” Pois bem, foi por obrigação — e talvez por um leve apetite de justiça — que um grupo de cidadãos resolveu ingressar com uma ação judicial contra uma companhia aérea, após um voo entre São Paulo e Paris lhes negar o jantar.
Não se tratava de uma greve de comissários, nem de turbulência que impedisse o serviço de bordo. Era escassez pura e simples. Afinal, os cidadãos estavam na classe econômica, como o nome diz.
Serviram-se apenas biscoitinhos, e aqueles que conseguiram dormir de barriga vazia suportaram as horas de voo com o tal jejum intermitente.
Chegando a Paris, em frente à Torre Eiffel, os passageiros se reuniram e decidiram fazer uma refeição digna, com champagne de qualidade, cassoulet e ratatouille. Para encerrar, o crème brûlée.
Guardaram a nota e, ao retornar ao Brasil, procuraram um desses advogados da internet e, juntos, decidiram litigar em litisconsórcio ativo.
O juiz, com o gabinete lotado de processos e vendo uma boa oportunidade para encerrar o caso com o fundamento de lide predatória, intimou o advogado a comprovar a existência física dos litigantes. Não bastava o CPF. Queria carne, osso e RG.
E foi então que, em uma tarde fria de terça-feira, o fórum recebeu uma romaria insólita. Eram vinte e três autores, cada qual com seu documento em mãos. À frente do grupo, uma placa improvisada, escrita com caneta azul: “Nós sempre teremos Paris.”
O juiz, que esperava fantasmas, viu rostos. Que esperava fraude, viu pedido de justiça. Não havia comunhão de direito em sentido estrito, mas havia comunhão de fato — e de frustração. O serviço defeituoso unira aqueles passageiros como a literatura une leitores: pela falta que faz.
A audiência terminou em acordo. A companhia aérea decidiu reembolsar o jantar e ainda indenizar cada passageiro. O juiz, aliviado, homologou o acordo com uma frase de Machado de Assis: “Não convém destruir as fábulas do povo.”, transitada em julgado, arquive-se.