Artigo
Por mais de vinte anos, o doutor advogado patrocinava os casos da Dona Maria. Cuidadoso, ético e estudioso, sabia exatamente onde ficava cada pasta do processo, o cartório em que tramitavam as ações, os nomes dos juízes que despachavam e até os diretores de cada vara — tudo decorado, como se fossem amigos de infância.
Tinha uma paciência extraordinária com Dona Maria. Gostava de ouvir suas histórias sobre ela e o marido, que trabalharam arduamente para construir patrimônio e viver com conforto, viajando mundo afora. Nunca tiveram filhos, mas foram felizes e aproveitaram o melhor que a vida lhes permitiu.
Até que, entre um prazo e outro, chegou a notícia de um precatório — fruto da desapropriação de uma casa que Dona Maria havia herdado dos avós. Quase cinco milhões. Uma verdadeira fortuna, considerando que, aos 99 anos, ela vivia entre livros, sopas e suas companheiras endinheiradas do asilo à beira-mar. Não tinha mais ninguém além das lembranças, o mar e seu advogado.
O valor caiu na conta do doutor, mas ele não repassou. Não por malícia, tampouco por ganância. Mas por medo — medo de ver Dona Maria partir e o montante acabar indo para o Estado como herdeiro. E, sobretudo, porque sua única filha, que também queria ser advogada e cursava o ultimo ano da faculdade de direito, precisava de um tratamento caro e urgente. Daqueles que não cabem na alçada do SUS nem na conta bancária vazia de honorários.
O juiz, desconfiado de que o mandado de levantamento havia sido direcionado à conta do advogado, percebeu a ausência de prestação de contas. Expediu ofício à OAB e, lá estava o doutor sendo processado — não só pelo que fez, mas pelo que não conseguiu evitar.
A crise moral veio como febre: noites mal dormidas, e, quando conseguia dormir, sonhava com artigos do Código de Ética. Ficou doente, mais pela culpa do que pelo processo ético disciplinar. Sentia vergonha. Inclusive deixou de frequentar a subseção da OAB — hábito semanal que alimentava seu orgulho de exercer a advocacia com honra.
Até que, como quem encerra um ciclo, Dona Maria morreu. Sem alarde, sem dor, sem herdeiros. Mas deixou um testamento cuidadosamente registrado no cartório de notas onde sempre fazia questão de lavrar suas procurações. Nele, legava tudo — absolutamente tudo — ao doutor advogado: “Ao digno profissional que, por mais de vinte anos, me ouviu e me protegeu.”
O juiz, ao ler o testamento, suspirou aliviado. Conhecia a índole do doutor advogado. A OAB arquivou o caso. E o advogado pôde, enfim, dormir em paz — ainda que fosse no leito do hospital, ao lado da filha recém-operada.
Com o dinheiro legalizado, sentiu o alívio de quem não herdou apenas os bens de sua falecida cliente, mas conseguiu se reconciliar com sua culpa — porque sabia que o que havia feito estava longe de ser moral.