Artigo
Naquela sala sombria do Fórum, onde já não havia mais funcionários, e as poucas pessoas que ali circulavam eram espíritos que aguardavam o desfecho de seu inventário — já que, no contencioso, tudo andava a passos de demora — resistia à modernidade forense o doutor juiz, homem metódico, que só não se aposentava porque não tinha o que fazer em casa.
Seu cartório tinha mais de cinco mil processos, e ele queria muito eliminá-los antes de sair de férias para a Europa.
Empolgado com a inteligência artificial, passou a se acostumar a não mais escrever sentenças, mas citá-las, deixando que essa nova tecnologia fizesse seu trabalho. Não que fosse preguiçoso — longe disso! Era, segundo dizia, um entusiasta da técnica moderna: a fundamentação por referência.
“Por que reinventar o raciocínio, se já foi dito com pensamento em outro processo pelo Tribunal Superior?”, resmungava, enquanto copiava trechos de acórdãos.
Certa tarde, ao negar conhecimento em embargos de declaração, limitou-se a transcrever sua própria sentença, sem ler o que o doutor advogado — criterioso no estudo de seus casos — apontara: uma contradição tão profunda que mais se aproximava de erro de julgamento, com acolhimento dos embargos com caráter infringente, do que de simples negativa de conhecimento.
Mesmo assim, os embargos foram negados e, apenas para inovar, o juiz citou ao final um trecho de uma obra de Machado de Assis que acabara de ler: “A mentira é muitas vezes tão involuntária como a respiração.” — Dom Casmurro
O doutor advogado, confuso, foi despachar novamente com o juiz e perguntou o que aquilo tinha a ver com o caso. O juiz, então, explicou que a citação era apenas uma forma de ilustrar que nem sempre o que parece omissão é desleixo — às vezes, é estilo. E, mais uma vez, deixou de conhecer os embargos de declaração, aplicando ao doutor advogado multa por caráter procrastinatório.
Mas eis que o doutor advogado recorreu, e a Corte, em julgamento repetitivo, decidiu que a fundamentação por referência só é válida se houver enfrentamento, ainda que sucinto, das novas questões relevantes. A técnica, portanto, não é um salvo-conduto para a preguiça, mas um convite à parcimônia com responsabilidade — e reformou a sentença do referido juiz.
Este, ao saber do teor do acórdão, suspirou: “Até mesmo a elegância precisa de limites”, disse, enquanto começava a redigir uma próxima sentença — desta vez com palavras próprias e leitura atenta ao processo. Afinal, como diria o próprio Machado: “Há entre a alma e o corpo uma linha de separação, que a análise pode descobrir, mas que a síntese da vida confunde.”
E assim, o caso ficou conhecido na Comarca como “a reforma”. Não pela reforma da decisão, mas pela reforma de comportamento do próprio juiz, que enfim descobriu que até mesmo a inteligência artificial precisa de um pouco de alma. Desde então, passou a escrever sentenças com mais cuidado — ainda que, vez ou outra, citasse Machado de Assis, seu escritor predileto, para lembrar que, no fundo, todo julgamento é também um espelho, tal como o alferes da Guarda Nacional.