Artigo
Em uma cidade do interior qualquer, considerada pacata e sem grandes perspectivas de futuro por seus moradores, foi morar uma família cujo filho tinha hipertricose — uma condição rara que lhe conferia características semelhantes às de um lobisomem. O rapaz, no entanto, era bondoso, extremamente inteligente e simpático, lidando com naturalidade com sua aparência.
A família, muito simples, sentia-se confusa. Os demais filhos sofriam bullying na escola por causa do irmão, o que motivou a mudança para uma cidade mais tranquila, onde seria mais fácil explicar a condição de saúde do jovem e buscar uma possível intervenção cirúrgica. Afinal, ali havia um dos melhores hospitais públicos do País.
Foi então que entrou em cena o doutor advogado — figura quase tão lendária da cidade quanto o próprio rapaz assim que começou a frequentar a escola local. Movido por seus deveres legais, um toque de criatividade jurídica e uma grande vontade de aparecer nas redes sociais, propôs uma ação de obrigação de fazer contra o hospital, exigindo a realização de uma cirurgia plástica que transformasse o jovem em um adolescente “normal”. Na petição inicial, o advogado requereu tutela de urgência, argumentando que a solteirice do rapaz e o bullying escolar justificavam a pressa. O juiz, impressionado ao conhecer o autor da ação em uma audiência de justificação, dispensou a caução e autorizou a cirurgia de forma imediata.
O desenrolar do caso, porém, ganhou contornos dignos de uma série. Antes do cumprimento da liminar, o prefeito, ao tomar conhecimento da ação judicial e vislumbrar o potencial turístico do rapaz, ingressou no processo como amicus curiae, alegando a necessidade de preservar a cultura local. Em pouco tempo, o jovem havia se tornado uma atração turística. Na defesa, o prefeito questionou quem garantiria os direitos personalíssimos daquele rosto e os direitos autorais de quem contava sua história, já que ele passou a ser considerado um personagem — sendo até protagonista de uma obra literária patrocinada pela Prefeitura.
Diante desse impasse, o hospital, obedecendo à ordem municipal para evitar negativas de verbas futuras, deixou de cumprir a decisão judicial. Afinal, o rosto do rapaz, em pouco tempo, já era considerado patrimônio da cidade: atraía turistas, gerava empregos e movimentava a economia local. O prefeito solicitou à procuradora municipal que interpusesse um agravo de instrumento na qualidade de amicus curiae, para que, em segunda instância, um desembargador — conhecedor de direitos autorais e folclore — suspendesse a ordem da cirurgia até que o rapaz e sua família fossem convencidos a desistir da intervenção.
Se o jovem trocasse de rosto, perderia a fama.... Mas, a julgar pela história, é melhor ser um lobisomem autêntico do que uma cópia malfeita de um rosto desconhecido. Pelo menos ali, a fama tinha cara — e direito — de quem nasceu para ser lenda.
O desfecho foi que o juiz de primeira instância, talvez inspirado por alguma cláusula poética do Código de Processo Civil, insistiu em uma audiência de conciliação, que restou frutífera, com a cirurgia suspensa por doze meses, tempo suficiente para que o rapaz e a prefeitura chegassem a um acordo de substituir o lobisomem autêntico por uma versão artificial, criada por inteligência artificial.
No fim, entre folclore e faturamento, o rapaz ficou com a fama, o prefeito com os turistas, e o advogado com um caso que virou lenda nas rodas de conversa do fórum — mais citado que súmula vinculante. Afinal, como bem pontuou o desembargador em seu voto, com a solenidade de quem cita jurisprudência e a leveza de quem conta causos: “Nem todo rosto é recurso, mas alguns são de interesse público e cultural.”