Artigo

18/12/2025
Autor: Renata Soltanovitch
As testemunhas do além e a carta psicografada
Crônica

O doutor advogado já não sabia mais como defender a tese de seu cliente. Havia obtido um feito processual extraordinário: anular a sentença no Tribunal de Justiça por falta de provas em duas oportunidades. O acórdão, inclusive, servira de jurisprudência.


Depois de muita insistência e de um pedido de reclamação, o juiz de primeira instância concedeu a oportunidade de produzir provas. Entre elas, estava a de ouvir testemunhas.


No entanto, por um contratempo do destino, todas as testemunhas haviam falecido em um acidente de veículo. Coincidentemente, estavam todas juntas — e mortas.


Após tantos desgastes processuais, lá estavam o advogado e o cliente em busca de soluções, já que as testemunhas eram a única forma de comprovar o alegado. O advogado estudara tudo o que se possa imaginar: leu jurisprudências, fez cursos rápidos, conversou com colegas e até consultou a inteligência artificial. Por fim, resolveu recorrer ao argumento da prova atípica: obter cartas psicografadas das testemunhas.


Aproveitou o recesso forense e foi ao centro espírita. Por uma coincidência do destino, o mesmo juiz que havia indeferido suas provas anteriormente encontrava-se na plateia da sessão espírita, empenhado em concluir seu livro sobre “Direito de personalidade e carta psicografada”. Era, enfim, sua chance. Mostraria ao juiz a veracidade da prova.


Mas o doutor advogado esqueceu um detalhe: a crença espiritual do magistrado não poderia influenciar na causa. Afinal, embora a epistemologia da prova pudesse ser certificada pelo próprio juiz, presente no ato, pela laicidade estatal a prova poderia ser considerada imprestável.


A questão, contudo, era de vida ou morte, e o advogado precisava ajudar seu cliente. Depois de várias sessões espíritas — até porque o telefone toca de lá para cá — finalmente as cartas psicografadas estavam prontas. Por cautela, pediu ainda a um perito que certificasse a caligrafia. Bingo: eram dos mortos!


Confiante, juntou as cartas ao processo. Mas o juiz — aquele mesmo que assistira à sessão espírita — partiu para um curso em Paris. Ah, Paris! E não seria mais competente para julgar o feito.


Não deu outra: indeferidas as provas e julgado improcedente o pedido, o recurso interposto seguiu o mesmo caminho, apesar de o doutor advogado ter feito sustentação oral brilhante, elogiada por todos os presentes. O pior, porém, estava por vir: acolhendo o pedido da parte contrária, o Desembargador determinou o desentranhamento da prova, bem como dos laudos técnicos subsequentes, fundamentando-se no Recurso em Habeas Corpus nº 167478 - MS (2022/0209635-2). Assim, evitava-se qualquer possibilidade, ainda que mínima, de recurso especial — como pode confirmar o atento leitor.


Sem esperança e sem honorários, concluiu o doutor advogado que patrocinar feitos judiciais com cláusula ad exitum não paga boletos.


E assim, entre autos e fantasmas, descobriu que o Direito, às vezes, é mais literário do que jurídico, e que a prática difere da teoria.


No fim, restou-lhe apenas uma certeza: se a Justiça é cega, o bolso do advogado é míope — enxerga apenas o que entra. E como nada entrou, o doutor resolveu escrever um artigo acadêmico sobre o tema, intitulado: “As testemunhas do além e a carta psicografada”.


Publicou-o em revista especializada, ganhou citações, prestígio e até convites para palestras. Só não ganhou dinheiro. Mas, como diria Machado de Assis: “Ao vencedor, as batatas.”