Artigo

13/11/2025
Autor: Renata Soltanovitch
Ao vencido, a multa se duvidar
crônica

Lá estava ela: a jovem doutora advogada, recém-formada, pronta para enfrentar os embates judiciais. Estudara com os melhores livros de doutrina, dominara o uso do Eproc e, com o diploma em mãos, dirigiu-se ao fórum para, utilizando-se da sala privativa de advogado, distribuir seu primeiro processo. Orgulhava-se do número da OAB e do certificado digital — símbolos de sua conquista.


Mas, como logo aprenderia, na prática a teoria é outra. Sua petição inicial foi despachada com uma enxurrada de exigências, baseadas em enunciados que sequer constavam na norma legal. Estranhou. Peticionou ao juiz. Mas não houve jeito: veio a sentença extinguindo o processo, sem julgamento do mérito, por descumprimento dos tais enunciados.


Chateada, perguntava-se como explicaria ao cliente que, embora tivesse seguido fielmente o Código de Processo Civil, havia enunciados que pareciam ter mais força que a própria lei.


O pior ainda estava por vir. Ao identificar uma possível contradição na sentença, cogitou interpor embargos de declaração. Contudo, hesitou: a própria decisão advertia que tal recurso poderia acarretar multa ao cliente — e outra a ela. Diante dos riscos, optou pela Apelação.


Explicou a situação ao cliente por telefone, formalizou por e-mail e enviou a guia para o recolhimento das custas. Meses depois, veio o julgamento em segunda instância. A Câmara Recursal determinou que o juiz recebesse a petição inicial, reconhecendo que os requisitos legais estavam presentes e que o processo deveria prosseguir.


“Quanto desperdício de tempo”, pensou a jovem advogada. O cliente arcara com as custas da apelação e perdera meses aguardando um julgamento que poderia ter sido evitado. Afinal, o Tribunal tinha questões mais relevantes para decidir.


Mas ela não se deixou abater. Quem se forma em Direito, dizia, já nasce com vocação para sofrer — com elegância. Resolveu estudar os tais enunciados, essas criaturas jurídicas que, embora invisíveis à lei, têm o poder de moldá-la.


— Ah, então é isso! — exclamou, ao encontrar contradições no próprio Código.


Passou a frequentar todos os eventos jurídicos possíveis, anotando enunciados como quem coleciona selos. Criou um fichário, decorado com post-its — hoje obsoletos no mundo eletrônico — com a inscrição: “Enunciados que anulam a lei”.


O cliente, por sua vez, já não sabia se havia ganhado ou perdido. A doutora, com a serenidade de quem estuda o CPC como quem lê contos machadianos, respondeu:


— Ganhamos o direito de continuar tentando.


E assim, entre uma petição e outra, foi descobrindo que o Direito não é apenas ciência, mas também arte — com direito a crônicas recheadas de pitadas machadianas. Porque fazer justiça, no Brasil, exige mais que técnica: exige resiliência.


E quanto ao juiz que extinguiu o processo? Dizem que, tempos depois, foi surpreendido por um novo enunciado, que invalidava o anterior. Mas isso, claro, é apenas boato. Como tudo no Direito, depende da interpretação.