Artigo

16/08/2025
Autor: Renata Soltanovitch
Animus hereditário
Crônica

O senhor velhinho não aguentava mais tanto desprezo de seus filhos. A vida tinha sido bem sofrida. Ele e a mulher trabalhavam dia e noite em sua fazenda para que as crianças tivessem comida na mesa e tênis nos pés. Nunca obrigou que eles trabalhassem na lavoura para ajudar na plantação e na colheita do café.


A educação era firme. Estudavam em escola pública, mas boa — daquelas que ainda tinham giz, honra e merenda decente. Praticavam esportes. Saíam de manhã cedo para a escola e só voltavam no meio da tarde, quando então a mãe os esperava com pão caseiro e uma xícara de café. Aliás, este tinha em abundância.


As crianças nunca foram agredidas. Quando muito, um tapa no bumbum ou um puxão de orelha, quando respondiam aos mais velhos ou não queriam fazer o dever de casa. O único defeito do pai era ser um jogador contumaz. Sobrava um dinheiro e lá estava ele apostando no jogo do bicho, com a mesma fé daquele advogado que interpõe Recurso Especial acreditando que será conhecido — ao menos isso — e remetido ao Superior Tribunal de Justiça para ser provido.


A vida foi passando, e o senhor velhinho, com sua esposa, que nunca viajaram, decidiu vender tudo e conhecer o mundo. Depois de dois anos viajando, voltaram pobres de dinheiro, embora a alma estivesse rica de aprendizado. No entanto, os cinco filhos, já doutorados na ingratidão, não quiseram receber os pais em casa. Estes decidiram ir para um asilo.


Os filhos se cotejaram para pagar um bem baratinho, escolhido com o mesmo critério de quem escolhe advogado pelo preço do anúncio no Instagram — e não pela confiança. A mãe, triste, morreu em dois meses. O pai, sozinho, decidiu que, se os filhos não queriam cuidar dele, cuidariam via processo. Ingressou com ação de alimentos. Mas só contra os filhos homens, deixando de lado as filhas mulheres.


O juiz, aplicando a norma legal, acolheu o pedido feito na contestação dos filhos para que ingressassem no processo as filhas mulheres, na qualidade de intervenção de terceiros, já que o pai era comum aos cinco filhos. E, para surpresa de todos, o juiz intimou para intervir no processo, como amicus curiae, a Associação dos Velhinhos Abandonados. Afinal, se o processo era sobre abandono, que viessem os especialistas.


Mas eis que o destino — esse juiz supremo sem instância recursal — resolveu dar uma virada: o velhinho ganhou uma bolada no jogo do bicho. Não contou pra ninguém. Continuou no asilo, pois até que gostava do lugar, já que ninguém o impedia de ir e vir, como se tivesse uma liminar em habeas corpus para transitar pelo bairro.


Com audiência marcada, manteve a tese: queria alimentos. Mas tinha um plano B — ou melhor, um plano T de Testamento. Se os filhos continuassem ingratos, seriam excluídos da herança com base no artigo “quem não cuida, não herda”.


Na audiência, os filhos brigaram como se estivessem disputando vaga no estacionamento do Fórum. Teve gritaria, empurra-empurra, advogado chamando outro de “incompetente”, e o juiz pedindo reforço da segurança. A Comissão de Prerrogativas foi chamada. Resultado: audiência suspensa, ofício para o Tribunal de Ética sob o fundamento da falta de urbanidade entre colegas e desrespeito ao magistrado.


No dia seguinte, o velhinho foi ao cartório de notas e fez o testamento: excluiu todos os filhos e deixou a bolada do jogo do bicho para as enfermeiras do asilo. Um mês depois, morreu tranquilamente, com um sorriso no rosto e um café na mão.


No velório, os filhos exibiam aquele alívio típico de quem confunde luto com liberdade. Eis que o pároco, cúmplice póstumo do defunto, abriu o testamento como quem lê uma sentença — logo após a audiência de instrução e os memoriais orais. Silêncio. Choque. E uma filha que desmaiou em cima do caixão.


No fim, processo de alimentos extinto e uma ação de anulação de testamento distribuída — até porque a grana era boa, e nenhum dos filhos iria deixar de tentar a sorte. Afinal, são herdeiros legítimos e não podem ser excluídos da herança. Ou podem?