Artigo

20/08/2025
Autor: Renata Soltanovitch
A tutela do coração
crônica

Não sei se por excesso de leitura de jurisprudência ou por desmotivação jurisdicional, mas o doutor advogado, convencido de que família servia apenas para seus estudos forenses, um dia se apaixonou por uma colega de profissão.


Conheceu-a nas lides jurídicas e logo fizeram uma amizade forense: participavam de grupos de debate, comissões da OAB e frequentavam a mesma subseção.


Ela, inteligente e combativa. Ele, homem de meia-idade, com vontade de ter companhia para viajar e usufruir de uma boa carta de vinhos.


Com o tempo, o doutor advogado começou a acreditar que a doutora estava apaixonada por ele. Estava sempre presente nos mesmos lugares. Mesmo se tratando de uma comarca pequena, onde os poucos locais badalados eram frequentados pelos mesmos colegas advogados.


Mais ainda: todos os comentários jurídicos que fazia nos grupos de debate ou nas rodas de conversa eram recebidos com sorrisos e concordância por ela. Afinal, ele dominava a matéria de Direito de Família.


Mas como o Código de Processo Civil não prevê exceção para paixões não correspondidas, um dia o doutor advogado invocou o artigo 311, com a solenidade de quem estuda a fundo a matéria, para requerer tutela antecipada que obrigasse a doutora a marcar data e local para o casamento.


A petição inicial, escrita com profundidade e técnica, dizia: “Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz, a requerida doutora advogada, ao compartilhar minhas opiniões jurídica e reagir com sorrisos aos meus comentários, deixou claro o vínculo afetivo. Requeiro, pois, que se antecipe os efeitos do matrimônio, com base na evidência do direito e no risco de dano irreparável — como, por exemplo, falecer solteiro. Que seja intimada para, no prazo legal, indicar data e local para o nosso casamento.”


O juiz, que sempre gostou de trabalhar naquela comarca, achou que o doutor advogado — homem respeitado — havia ficado inimputável. Mas decidiu ver até onde aquilo poderia ir e despachou: “Intime-se a advogada apenas para ciência da ação. E como dizia Machado de Assis: ‘Amor repelido é amor multiplicado.’


A doutora advogada, ao receber a intimação pelo Oficial de Justiça, foi pessoalmente falar com o juiz, que pediu para ela fazer uma cota na mesma folha do processo. E assim ela escreveu: “Excelência, o autor doutor advogado confunde cortesia com consentimento. A concordância com seus comentários jurídicos, que sempre foram plausíveis, não é aceite de matrimônio”.


O processo seguiu, entre risos abafados nos corredores do fórum e debates acalorados entre estagiários que, pela primeira vez, viram o Direito flertar com o delírio.


Ao final, o juiz proferiu sentença memorável: “O amor, por mais evidente que pareça ao autor doutor advogado, não é matéria jurisdicional. O Judiciário não é cartório de cupidos. Indefiro o pedido. Oficie-se à CAASP, pois parece-me que o doutor advogado está inimputável. Dê-se conhecimento também ao Tribunal de Ética. Arquive-se, não sem antes dar baixa no Distribuidor Forense.”


O doutor advogado, ao ser intimado pelo Diário Oficial, ficou com o coração ferido e a alma insatisfeita. Esperou o trânsito em julgado da sentença e decidiu se mudar da comarca. Foi para uma cidade grande, onde ninguém o conhecia — e onde poderia atuar em sua profissão sem nunca mais se apaixonar.