Artigo

01/10/2017
Autor: Renata Soltanovitch
A morte de uma história
Os bastidores da morte

Andréa morava com sua avó Suzana desde pequena, por pura opção e desgosto dos pais, que queriam cuidar dela.


Acontece que ela tinha uma ligação muito forte e inexplicável com aquela avó materna, viúva, negra e neta de escravos, e que a ensinou a arte da capoeira.


Sua casa era um museu a céu aberto, onde ali vivera, há séculos, uma Sinhá Moça qualquer, que, com seu marido, protegiam os escravos dos açoites.


As árvores locais poderiam contar grandes histórias, se soubessem falar.


Ao fundo da enorme casa, se via uma capela, onde, no passado, se velavam os corpos dos escravos e ali mesmo, os enterravam.


Andréa adorava morar ali e com permissão de sua avó, uma vez por semana, reunia no quintal mestres da arte de capoeira para jogar, trocar experiências, ouvir o som do berimbau, cantar e referendar seus ancestrais.


Eram noites mágicas, muitas vezes tendo como testemunha somente o luar, do que ocorria quando se iniciava uma roda de capoeira.


Os anos foram passando e Andréa se formou professora, mas continuou transmitindo aquilo que sua avó lhe ensinara desde pequena.


Com receio de um dia aquela magia iria acabar, Suzana, a avó de Andréa, decidiu fazer um testamento de próprio punho, deixando toda a casa, que composta de um enorme terreno e no fundo a capela, para sua neta, explicando os motivos de não reservar aos seus filhos a legítima determinada legalmente.


Esclareceu, sem economizar nas palavras, o valor histórico daquele imóvel. O que ocorrera no passado e ainda como aquilo tudo lhe pertencia, poderia dar o destino que bem entendesse, pois ensinou os filhos o ofício de trabalhar e deveriam eles buscar a fortuna que seu coração desejasse.


Embora a vontade de D. Suzana fosse bem justa e razoável, infelizmente a lei não lhe protegia e quando veio a falecer, aquele testamento escrito à mão, sem qualquer registro de cartório, foi rasgado e colocado fogo pelo seu primogênito. Um “maluco de pedra”, como ela costumava a dizer. Além de mesquinho, insensato, arrogante, cafajeste e, para completar, mau caráter.


Se “da arvore se conhecem os frutos”, D. Suzana poderia então para quem olhasse Andréa, seu melhor fruto, embora neta. Não entendia porque seus filhos queriam tanto destruir aquela história e vender o terreno para a construtora que insistia diuturnamente em comprá-la.


No dia da morte de D. Suzana, Andréa ficara desolada. Reuniu todos seus amigos capoeiristas e fez o último jogo em homenagem a sua avó. Foi um belo funeral, com direito ao toque de Iúna, chorado pelo som do berimbau nas mãos do experiente mestre.


Logo após a missa de sétimo dia, ocorrido na capela da sua grande casa, em total desrespeito ao seu luto, Andréa recebe um Oficial de Justiça com uma ordem de desocupação da casa em 30 dias.


Tratava-se de uma ação de reintegração de posse, encabeçado pelo seu tio, o primogênito da sua avó.


Andréa imediatamente procurou Renato, um excelente advogado, também capoeirista, que certamente entendia o seu sentimento de manter intacto aquele lugar.


Por sorte, Andréa possuía uma cópia do testamento escrito pela sua avó, embora o mau caráter de seu tio tivesse colocado fogo no original. Porém, testemunhas não iriam faltar para ratificar o teor do documento.


Renato – o advogado – era apaixonado pelo contencioso judicial. Adorava uma boa demanda, mas sabia que, neste caso, infelizmente, Andréa não teria nenhuma chance.


Estrategista e conhecedor da lei, Renato providenciou imediatamente três medidas judiciais. A primeira, foi interpor agravo de instrumento da liminar de desocupação, depois foi contestar a ação, juntando cópia do testamento particular, indicação do valor histórico do local, e requerendo, por fim, a nulidade da citação de Andréa, feita no dia da missa de sétimo dia de sua avó.


A terceira medida, tão importante quanto às duas primeiras, foi ingressar com uma medida cautelar de produção antecipada de provas, explicando para o juiz a necessidade de se constatar que aquele imóvel possuía uma valorização histórica, além da questão ambiental, em decorrência dos “anos luz” que tinham as árvores plantadas no terreno.


Com a autorização concedida pelo juiz, Renato indicou para assistente técnico do perito, alguns mestres e contramestres de capoeira, conhecedores da história. Aliás, todo o capoeirista necessita conhecer não só a filosofia da capoeira, mas também sua origem, o que certamente o remeteria a história propriamente dita do descobrimento do Brasil, dos escravos e do nascimento de uma importante nação.


Com isso, a ordem de desocupação foi suspensa para realização da referida medida cautelar que duraram exatos doze meses, dada a complexidade do caso.


Transcorrido este período, não teve jeito, Andréa precisou desocupar o imóvel e o primogênito de sua avó, astuto e de mau caráter, não demorou em fechar negócio com a construtora que, há muito, queria o terreno, sem qualquer preocupação com a demanda que pairava sobre o imóvel.


A construtora, por sua vez, que nunca se preocupou em respeitar ordens judiciais e que, tecnicamente, não tinha relação jurídica nenhuma com o processo, fechou o negócio e no dia seguinte, deu início ao seu grande objetivo, ou seja, derrubar árvores, a grande casa e principalmente a capela, sem se preocupar com o valor histórico do local.


Cercou o terreno com tapumes e alugou uma máquina trator para por abaixo tudo que estava ali.


Por sete dias consecutivos, tudo dava errado. Ora o trator não ligava, ora a tempestade se fazia presente, ora o engenheiro passava mal. O material era furtado toda a noite e então o dono da construtora decidiu contratar um vigia para ficar no local.


Seu Zé, o vigia, era um homem respeitado, embora já com certa idade, era forte e esperto. No passado, havia sido Policial Militar, o que rendera conhecimentos suficientes para não ser enganado por bandidos de material de construção.


Na primeira noite que estava ali, ouviu gritos e risadas dentro do terreno e decidiu averiguar. Mesmo com sua poderosa lanterna, nada encontrou. A madrugada avançava e ouviu novamente alguns sons, desta vez, vindo da própria casa.


Como ali não havia mais energia elétrica, novamente fez uso de sua lanterna e, mesmo sem constatar a presença humana, sentiu que o lugar estava lotado, e ao longe, vindo do porão da velha casa, escutou barulho de chicote e corrente se arrastando.


Decidiu não descer, pois sabia da história do local. Iria primeiro conversar com seu protetor espiritual.


No dia seguinte, o dono da construtora ficou muito doente e foi internado. O engenheiro, cauteloso, decidiu suspender a obra, por conta até mesmo do relato do Sr. Zé.


Naquela noite, o vigia ouviu de dentro da capela, uma missa, mas não conseguiu enxergar ninguém lá dentro. Poucas horas depois e um pouco antes do amanhecer, escutou o som do berimbau e a voz grossa do mestre entoando um canto.


Em um relance rápido de olhar, percebeu a presença de inúmeras pessoas de branco e uma roda de capoeira, cercando dois jogadores que movimentavam seus corpos em um ritmo harmonioso.


Estarrecido, o vigia Sr. Zé aperta o patuá que carregava sempre em seu bolso entendendo, naquele momento, o motivo das interrupções constantes daquela obra, incluindo a doença do dono da construtora.


Sem saber o que fazer, mas acreditando no que vira – e foi sua fé e sua crença que o protegeu durante anos na polícia – decidiu procurar o Promotor Vieira, pois sabia que ele, um homem íntegro, poderia pensar em algo para proteger aquela história que seria destruída por mais um edifício.


Depois de ouvir tudo que o Sr. Zé dissera e lembrando-se da fé inabalável de sua mãe e ainda do que já vivera, decidiu então ir até o local da obra.


Nem precisou chegar perto da casa, pois foi ali mesmo, no terreno, próximo da capela, que ouviu o som do berimbau e o canto de uma música.


O Promotor Vieira nada conseguiu fazer contra a ordem judicial e foi então que Andréa, junto com seu amigo e advogado Renato decidiram levar a cópia do laudo da medida cautelar de antecipação de provas para o dono da construtora objetivando comprovar o valor histórico de tudo aquilo.


No entanto, impetuoso, o dono da construtora, sem respeitar qualquer tipo de ordem judicial, decidiu, ele mesmo, subir em um trator e derrubar inicialmente a casa.


E foi isto que fez ao sair do hospital, após dias de internação sem explicação médica.


Determinado, o dono da construtora entrou no terreno ao entardecer e iniciou os trabalhos, derrubando a casa, continuando durante toda a madrugada, sem se preocupar, inclusive, com os vizinhos ou qualquer barulho.


Até que, antes do amanhecer, apareceu o Promotor Vieira com a Polícia Militar para impedir a continuidade daquela destruição.


Sem precisar usar a força, a experiente polícia conseguiu fazer o dono da construtora parar com a barbárie, embora o grande estrago já estivesse feito.


No entanto, com os primeiros raios de sol, descobriu-se que onde estava instalada a cada da D. Suzana, havia um grande cemitério de escravos. Foram localizados materiais arqueológicos, onde se contava a história daquele povo vindo, muitas vezes, de Países distantes para servir grandes ideais e gigantes egos de donos de Fazendas.


A imprensa chegou e imediatamente nada mais pode ser tocado.


Andréa ficou feliz, pois a capela, as árvores centenárias e o pequeno estaleiro e o porão, onde havia outras coisas de sua avó, com grande valor histórico, ficaram intactos e pode se preservar para a geração seguinte, a história de uma nação.


 


                       FIM !!!!!