Artigo

11/10/2025
Autor: Renata Soltanovitch
A ética do frango
crônica

O advogado foi contratado por um frigorífico com o objetivo de processar um concorrente que abatia aves para a produção de empadas de frango, alegando que as chaminés da empresa exalavam odores semelhantes ao de carniça, além de haver indícios de maus-tratos às galinhas. No entanto, a verdadeira motivação do cliente era mais profunda: desejava eliminar não apenas a empresa rival, mas também a cidade onde ela estava instalada — um município do interior amplamente conhecido como a capital da empada, que atraía muitos turistas e gerava praticamente todo o emprego da região.


Isso porque, desde a farinha utilizada na empada até o produto final, tudo era feito com ingredientes locais, fortalecendo a economia regional e contribuindo para a qualidade de vida da população.


A ação foi distribuída à unidade judiciária vizinha, já que não havia fórum na pequena — e próspera — cidade da empada. Ali, quase não havia demandas judiciais, pois o local vivia em harmonia; inclusive, não existiam crimes e nem ações trabalhistas.


O magistrado, conhecido por nunca se preocupar em levantar sua bunda da cadeira, leu a petição inicial com pedido de tutela liminar para o fechamento imediato da empresa, sob a alegação de grave crime ambiental. O processo continha laudos assinados por diversos especialistas, declarações de testemunhas e muitos vídeos. Sentindo-se horrorizado, o juiz concedeu imediatamente a liminar para o fechamento da empresa.


Assim que o sócio da empresa foi intimado, o oficial de justiça apresentou a ordem judicial, acompanhado pelo advogado responsável pelo cumprimento da liminar e de um forte esquema de segurança privada. O prefeito local foi avisado e solicitou ao seu advogado de confiança que interviesse junto ao magistrado, pois a questão envolvia mais o interesse público do que o de uma empresa privada.


Contudo, como o juiz não residia na cidade e o Carnaval se aproximava, ele já havia partido para Salvador, para ver o Olodum balançar o Pelô. Assim, a liminar permanecia válida, com multa diária de um milhão de reais.


A empresa decidiu arriscar e manter o negócio funcionando, a pedido do prefeito, já que muitos turistas estavam prestes a chegar para o feriado na cidade. O advogado do concorrente soube da manutenção do funcionamento, acionou a polícia e alegou descumprimento de ordem judicial.


A polícia informou que nada poderia fazer, e a fábrica continuou operando normalmente durante o feriado.


Com a cabeça mais fria, o advogado que patrocinou a ação passou o feriado estudando o processo e acabou descobrindo que os laudos entregues por seu cliente eram todos falsos. Os vídeos haviam sido gerados por inteligência artificial, e as declarações eram mentirosas — os declarantes eram moradores de outro Estado, que coincidentemente tinha o mesmo nome dos moradores locais.


Desesperado e sabendo que não poderia denunciar seu próprio cliente — nem mesmo por meio de colaboração premiada, pois o Estatuto da Advocacia o proibia —, renunciou ao processo e passou a sofrer de insônia.


Nas raras vezes em que dormia, via galinhas em seus pesadelos, todas com olhos acusadores, vestidas de toga, rumo ao Tribunal.


O magistrado, ao retornar de Salvador com um colar de fitinhas, encontrou a cidade em festa e a fábrica em pleno vapor, mesmo após mais de uma semana da liminar concedida por ele para seu fechamento. Em sua mesa, havia um envelope escrito “Abra, se queres conhecer a verdade e fazer parte da justiça”, contendo, de forma anônima, uma denúncia sobre as falsidades processuais.


Depois de apurar os fatos de ofício, caso raro por parte dele, o juiz extinguiu o processo sem julgamento de mérito, oficiou a delegacia de polícia para investigar as denúncias e processar os culpados, e comunicou a OAB para punir o causídico.


Quanto ao advogado, após ser repreendido pela OAB por ingressar com lide temerária, mudou-se para uma cidade vegetariana. Passou a escrever contos jurídicos com finais trágicos e personagens que sempre acabam renunciando à causa e à carreira, principalmente a jurídica. Publicou um livro chamado “A Ética do Frango”, que vendeu três cópias: uma para sua mãe, outra para o ex-cliente (que queria processá-lo, pois acreditava ser ele o autor do envelope anônimo ao juiz), e uma terceira para um crítico literário que o confundiu com um autor russo em razão de seu sobrenome.


E assim terminou o caso, não com sentença, mas com sabor — de empada, de ironia e de justiça, ainda que não exatamente a do processo.


Fico só pensando o que Machado de Assis acharia deste conto e se Carolina o vedaria para publicação.