Artigo

12/11/2025
Autor: Renata Soltanovitch
A escritura e o escândalo
crônica

Era uma sexta-feira ensolarada — daquelas perfeitas para concretizar o negócio tão aguardado pelo doutor advogado. Finalmente, seu cliente venderia o belo apartamento à beira-mar e, com isso, pagaria os honorários devidos. Não apenas os atrasados de diversos processos que ele patrocinava, mas também os referentes àquela diligência específica. Tudo conforme a tabela da OAB.


O advogado já se via nas férias forenses com a família. Planejava levar a esposa para alguns dias em um resort no Nordeste brasileiro. “Cada lugar mais lindo que o outro”, pensava. Nada de prazos, nada de E-SAJ, muito menos de E-PROC.


No dia da escritura, lá estava ele, enfrentando um calor de quase 40 graus, vestindo seu melhor terno e sapatos impecavelmente engraxados, já contando mentalmente os honorários. Só esqueceu de um detalhe: não conferiu pessoalmente as certidões forenses que o corretor de imóveis entregou diretamente à escrevente do cartório, sem sua supervisão.


Tudo transcorria com a solenidade apressada típica de quem intermediou o negócio, até que a escrevente — moça diligente, de óculos que lhe conferiam ares de juíza — interrompeu o rito. Dirigiu-se ao vendedor e perguntou, com voz firme, se ele havia informado ao comprador, presente na sala, que sua certidão forense registrava um divórcio.


— O senhor está divorciado por liminar expedida pela Vara da Família. O motivo alegado: violência doméstica.


Silêncio. Um silêncio tão denso que só se ouvia o som das ondas do mar — o cartório também ficava de frente para a praia.


O comprador empalideceu. Sabia que o imóvel pertencia exclusivamente ao vendedor, casado sob o regime de separação total de bens. Mas conhecia bem o temperamento da esposa. Esta, que até então folheava distraidamente um catálogo de reforma e design de interiores, ergueu os olhos com a firmeza de quem já tomara sua decisão:


— Não compro apartamento de homem que agride mulher. Vamos embora. Agora!. Determinou ao marido.


O advogado, que até então se distraía com o celular, tentou uma explicação jurídica — daquelas que se amparam na frieza da lei. Argumentou que, pelo regime de bens, a ex-esposa não teria qualquer direito sobre o imóvel. Acrescentou que uma liminar não era sentença definitiva e que ainda cabia produção de provas.


Mas a esposa do comprador não se comoveu. O marido, que já se imaginava lendo Machado de Assis e Nietzsche na varanda do sonhado apartamento com vista para o mar, guardou o talão de cheques no bolso e se levantou.


O vendedor, por sua vez, permaneceu em silêncio. Sabia que aquela agressão, fruto de um impulso após chegar bêbado de um jogo de futebol, lhe custaria mais do que um processo judicial. Lançou um olhar furioso ao corretor, que falhara ao não solicitar a certidão de objeto e pé, como combinado. Saiu desconcertado, carregando o peso da acusação, o arrependimento pela agressão e a dor de ter perdido a mulher amada por causa de uma discussão.


E assim, naquele dia de sol, o advogado aprendeu uma lição valiosa: a compra e venda de imóveis deve sempre ser precedida por um compromisso formal, elaborado por advogado, com análise criteriosa das certidões forenses. Tudo para evitar ruídos entre as partes.


E lá se foram suas sonhadas férias, pensou.